"Do cidadão à cidade: dispositivos de poder e participação democrática"
"Velha de milhares de anos, a cidade continua a ser um espaço em mutação, expressão fiel das formas de sociabilidade e cooperação tanto quanto das tensões e conflitos que definem cada período histórico. Calhou-nos viver um tempo de mudança acelerada, que tem sido objeto de múltiplas interpretações, umas sublinhando o «medo» como condição inescapável da selva urbana, outras apontando a «liquidificação» do que a modernidade nos habituara a ver como sólido, outras ainda sinalizando a exponenciação do «individualismo», tornado critério matricial da condição humana.
Ainda que velhas de milhares de anos, as cidades são, desde sempre, o espaço ideal para novas e transgressoras experiências de vida coletiva. É na cidade que nasce a democracia, e com ela as ambições mobilizadoras que a modernidade nos legou - igualdade, soberania popular, inclusão.
Enquanto lugar de concretização da utopia democrática, a grande cidade cosmopolita, típica deste novo século, pode ser vista como uma espécie de microcosmos, ponto nodal para onde toda a sociedade olha, umas vezes como ameaça outras como promessa de um mundo melhor. A utopia democrática parece-nos cada vez mais distante, mas existem, porém, sinais de resistência, e, uma vez mais, é na cidade que esses sinais se expressam de forma evidente.
É preciso reforçar e reinventar o lugar e o papel dos cidadãos na gestão do que é comum. Ao invés da fatalidade de um regime pós-democrático, já muitas vezes evocado, há que defender o fortalecimento de uma democracia solidificada pela base, pelo envolvimento dos cidadãos que a todos nos implica. Perante as ameaças à democracia outros sinais vão emergindo, trazendo com eles a esperança de uma sociedade mais justa e de cidades mais integradas e democráticas. A vontade de uma democracia participativa, fecundada por modelos de participação cívica, vai ganhando relevo e destaque.
Os orçamentos participativos e outras votações e discussões públicas de projetos e planos municipais, como a que se está a fazer, atualmente, em Torres Novas, a propósito do PEDU, são uma das faces das novas propostas democráticas para vencer o ceticismo e o desânimo: experiências positivas ainda que ambíguas devido ao potencial de transgressão que encerram. Os orçamentos participativos e as demais discussões públicas correm o risco de ser reduzidos a encenações de participação: uma espécie de emblema de «boa conduta democrática». Está nas mãos dos cidadãos fazer com que tudo mude, obrigando os governos locais a distribuir poder efetivos pelos governados.
É esta a luta que importa empreender, e a cidade, uma vez mais, há de ser o palco privilegiado dessa luta.
Lúis Cunha, antropólogo/docente na Universidade do Minho e investigador do Centro de Rede de Investigação em Antropologia
* O caderno de campo é a ferramenta usada pelos investigadores de diversas áreas do conhecimento (como a biologia, a geologia, a geografia, a sociologia, a literatura, a arquitetura, a antropologia, as belas artes e outras) para anotar as observações das saídas de campo ou reflexões avulsas.